domingo, 4 de agosto de 2013

Da Janela

Não. Não era só a calça desfiada, ou o tênis desamarrado.
Não era o seu cabelo desalinhado, nem a mochila em suas costas.
Havia algo vindo da sua pele. Um frescor juvenil, um aroma de 'coisa nova'.
Se fosse pra esboçar seu rascunho, diria que não deveria ter problemas. Diria que ainda experimentava a vida. Ela parecia feliz. E isso, tão raro nos dias de hoje, se tornara seu encanto.
Já não era adolescente, mas aquele ar de menina livre se mantinha.
Era como se tudo o que realmente importasse, estivesse dentro daquela mochila.
Eu me perguntava que alma era aquela, que, de tão leve, pesava em meus pensamentos.
E, todos os dias, no mesmo horário, eu, da janela do escritório, vislumbrava o desfile dos seus cabelos livres, tão livres quanto o seu olhar. Um olhar que não me via, mas que, a partir daqueles instantes, eu passava a ter um dia melhor.
Eu, com medo de estragar a magia que me ligava à ela, escondia-me atrás da cortina. Assim, além de me proteger, cuidava dela e, ao mesmo tempo, a destacava de todo o resto.
Então, meus olhos a seguiam por aquele quarteirão sem perder um passo seu e, quando ela virava a esquina, eu já me punha a aguardar pelo próximo dia, pelo próximo 'encontro'. Ah, que raiva eu sentia daquela esquina!
A partir dali, minha imaginação produzia imagens sobre o que acontecia longe dos meus olhos: até onde ela ia, onde entrava, o quê fazia... Mas, de que maneira eu saberia, se eu sequer cogitava interferir naquela rotina e correr o risco de quebrar a beleza do pouco que me fazia tão bem?
E assim, os dias corriam, a vida seguia.
E, por meses a fio, religiosamente, eu estava lá, naquela janela nada indiscreta.
Foi quando, num certo dia ventoso, uma folha de papel com o seu desenho voou de minha mesa e passou pelas vidraças abertas.
Constrangida e com receio de que aquilo fosse o suficiente para atrapalhar aquela paisagem, intacta há tanto tempo, tentei guiar seu 'pouso' com a força do meu olhar.
Até hoje não sei se meu olhar me traiu, ou se ele nunca teve a menor influência sobre minhas vontades.
Aquela folha de papel aterrissou logo à frente de seu próximo passo.
Foi quando ela a apanhou.
Apanhou e leu.
Leu e me olhou.
Olhou e sorriu.
Sorriu e me chamou.
Estremeci e titubeei, mas, em milésimos de segundo, refleti e concluí que não perderia algo além do que concretamente nunca tivera.
Desci e, daquele ponto da calçada, mirei aquela janela.
Percebi que ela era bem menos discreta do que eu supunha e que as personagens dessa história já eram íntimas, cada uma em seu silêncio.
Então, em silêncio, seguimos pelo quarteirão.
E viramos a esquina.

(Stella Marla - 04Ago2013, da série 'Tirados da Gaveta')


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