sexta-feira, 27 de julho de 2012

Roupa de Domingo

Ela abre o armário e, cuidadosamente, escolhe roupa de passeio.
Era um domingo entre tantos e como todos.
Dia de igreja.
De tomar sol na praça.
De rever as pessoas de sempre.
A monotonia aguardada.
Entretanto, este domingo lhe fora entregue em papel para presente.
Ela estava diferente da semana passada.
A precisão do espelho refletia outra.
Não pelo casaco vermelho que se atreveu provar.
Nem pelo cabelo, que deixara de enrolar à noite.
Mas algo estava diferente.
‘Incrível’, pensava.
Depois de tantos dissabores e desafetos...
Constatava que os últimos acontecimentos não lhe mexeram só por dentro.
Os reflexos faziam questão de acusar nuances jamais testemunhadas.
Como se fosse o primeiro encontro.
Como se fosse o primeiro encanto.
Como se fosse o primeiro amor.
Como se nada, antes, tivesse havido.
Se pudesse, usaria roupa nova neste domingo.
Ou aquela roupa que combina cores sentidas com sapatos leves.
Ela vai deixar que seus cabelos, hoje descomprometidos, esbocem sua alma que flutua, e encaixará à orelha uma flor da pitangueira que abraça sua janela.
E, vestida de domingo, vai dançar Sinatra no quarto ensolarado antes de se mostrar ao dia.
Vai rodopiar abraçada a um vestido antes esquecido, de tão vivo que é.
E junto à roupas, cabelos, sapatos, espelho e música, brinda ao velho-novo sentir, o mesmo para quem um dia disse ‘adeus’.
Porque o medo, há certo tempo, era o de nada mais sentir.
Há uma semana há novos sons e tons invadindo sua janela.
Há uma semana ela espera, como nunca, aquele dia chegar.
O dia de ir à igreja.
De tomar sol na praça.
Para vestir roupa bonita.
Como se recém ensaiasse um encontro.
Um encanto.
Um amor.

(Stella Marla - 27Jul2012)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Os Trilhos do Trem

Cruzamento de rotina.
Perigoso, no entanto.
Músicas num volume alto impediam que ela mensurasse
o risco que corria ao passar por ali.
Porém, quando despertava para a importância daquele
milésimo de segundo gasto na travessia, estremecia.
Intrigante, entretanto, era o fato daquele medo lhe proporcionar fascínio.
Sim, era fascinante contemplar duas linhas paralelas
tomando forma de um ângulo absurdamente reto quando ela as invadia,
ainda que por quase nada de tempo.
Invasão.
Sintonia.
Desafio.
Intimidade.
Tentação.
E, então... racionalidade.
Tudo tão adverso quanto a formação de um ângulo reto.
Instantes tão confusos e, ao mesmo tempo, completamente simplificados.
Havia, sim, o entendimento de que deveria ser apenas parte do hábito.
Mas havia, também, a compreensão de que manter aquele hábito pudesse resultar num vício estranho, misto de gôzo e dor.
Não.
Urgência de outra rota.
Da velha rota.
Voltar às vias que a protegiam daquele grito produzido pela máquina
de ferro, que, impiedosa e atrevidamente, rasgava seu caminho.
Música em volume ameno, agora.
Permanência mínima naquele cruzamento inevitável e que, invariavelmente, ordenava: 'pare, olhe, escute!'
Haverá, sim, outros casamentos dos trajetos com suas linhas.
Não havendo o que temer, desnecessários serão os desvios para outros atalhos.
Todavia, aquela velha e conhecida via suscita simular abnegação e constância, sempre que, cálida e perplexa, ela trespassa os trilhos do trem.

(Stella Marla - 03Mai2012)