domingo, 8 de maio de 2011

Simbiose

Não que ela não a tivesse amado.
Amou.
O que realmente atormentava seus sonhos, era aquela mesma sensação que vez ou outra sufocava a alma.
Não que ela não quisesse ter vivido tudo aquilo.
Sabia do risco, mas se entregou a cada pequeno momento.
Eram exatamente aqueles momentos os algozes de sua memória quase infalível.
Sem entender porquê tudo voltava tão vívido, procurava manter à certa distância qualquer ameaça de desestruturar as trincheiras que havia construído ao seu redor.
Noites que nasceram no verão, sobreviveram ao outono e morreram no inverno.
Antes mesmo que a primavera pudesse oferecer as flores, falece o maior e melhor caso de amor de sua vida.
Tudo fora minimamente planejado. Não por elas. Pelo que tinha de ser.
O leve toque nada acidental das mãos. Os olhares vorazes e arrebatadores. A dança: o corpo, instrumento de sedução.
Palco montado.
Teatro mudo. O que mais precisava ser dito?
Alvo da sedução, a seduzida havia sido caçada, marcada, jurada de amor. Era apenas uma questão de tempo, pouco tempo.
Encaixe perfeito de corpos e bocas.
Necessidades de pele e alma satisfeitas. Limites desfeitos. Curvas e medos nus.
Obstáculos imensos foram, simplesmente, desprezados.
O poder que o amor lhes concedia, tornava-nas ainda mais fortes, quase imbatíveis.
Morreriam juntas, fosse essa a solução.
Havia a distância física imposta pelos rumos familiares da outra.
Viagens longas lotadas de saudade desbravavam fronteiras que mais pareciam maquetes.
Lua.
Frio.
Estrelas.
E as noites se tornavam verdadeiros passeios mágicos com destino ao encontro mais feliz.
Na estação, olhos se buscavam, braços se encontravam. Almas juntas.
Na espreita, o resto do mundo.
O que era informal, tomou forma.
A brincadeira pueril virou romance maduro, caso sério.
Não havia maneira de conjecturar a união de almas tão perfeitamente sincronizadas. Não dessas.
Foi quando elas espiaram os bastidores.
E viram rostos desfigurados. E traços distorcidos. E olhares maliciosos.
Ouviram cochichos e risadas carregadas de sarcasmo.
Constataram gestos invejosos, movimentos de repulsa e falsa moral.
Invisível àqueles pares de olhos brilhantes, o ciúme circunvizinho as patrulhava silenciosamente.
A mancha escura do julgamento alheio invadia lenta e ardilosamente, espalhando-se pelas estrias das cortinas, como azougue fugidiço.
Impiedosamente, as coxias despiram-se das máscaras e investiram no açoite às amantes.
Desmembramento.
Dor.
Abstinência.
Privação.
Simbiose desfeita.
Foi depois disso que as coisas mudaram.
Não que não tenha amado novamente.
Sofreu de novo.
Mas a intensidade de tudo que veio depois, foi atenuada, arrefecida.
Ela sabia que nada mais seria igual.
Nem com os outros.
Nem consigo mesma.
Ainda assim, as lembranças... Preferia tê-las.
Lidava com a ruína de um modo cândido: a candura ainda lhe era peculiar.
Entretanto, em suas preces implorava que fosse poupada de revê-la.
De pensar que isso pudesse acontecer em uma esquina qualquer, sufocava.
Todos os verões dos anos seguintes foram marcados pelo embaraço da dor com a saudade.
Inconscientemente, evitava, fugia das noites quentes e estreladas.
Procurava lugares menos frequentados, ambientes sem grandes atrativos, onde não corresse grande risco de reencontrá-la.
Arcou com essa escolha por muitos anos.
Até que, numa noite inofensiva, num bar qualquer, alguém gesticulava no balcão.
Sim, era ela, e fora reconhecida pelas mãos.
As mãos, assim como todos os outros detalhes, nunca foram esquecidas.
Havia maneira de voltar e sair despercebidamente.
Decidiu ficar.

(Stella Marla - Mar2011)