domingo, 25 de agosto de 2013


'As afinidades são autoexplicativas.'

(Stella Marla - 25Ago2013)

domingo, 11 de agosto de 2013

Francisco

Não, não sentamos pra brincar no ‘tapete da sala de estar’.
Tão pouco me ensinou a caminhar.
Ele, mesmo, já desaprendera.
Não, não brincamos na pracinha.
Nem me ensinou a ler e escrever.
Então, também não tivemos aquela conversa de pai pra filha.
Eu, na minha inocência, gostava da sensação de suas mãos trêmulas em meus cabelos.
Sentia que o cheiro do meu pai era diferente do da minha mãe, mas, de qualquer forma, eu sempre o esperava chegar em casa.
Do seu jeito cambaleante, ele me levava pro seu quarto e, com a brasa do palito de fósforo com o qual ele acendia o cigarro, desenhava, no escuro, figuras de todos os bichinhos que uma criança de três anos pudesse conhecer.
E assim, eu dormia em seu peito.
Aquele era um momento verdadeiramente mágico no meio de uma realidade falida.
Pra aceitá-lo e não estragar os poucos momentos perfeitos que passamos, escolhi não lembrar de todos os episódios ruins que presenciei e não entendi.
Quando o vi submerso naquela banheira de louça branca, curando uma de suas violentas ressacas ao som de ‘Além do Horizonte’, do Roberto, preferi guardar no meu ‘jogo psicológico de sobrevivência’ a imagem do seu sorriso tonto e fazer dessa música um 'hino de esperança'.
Soube mais de meu pai pelo que os outros contaram.
Alguns disseram que tenho seu jeito, seu signo, sua boca e seu senso de humor.
Outros contaram sobre as sacanagens daquele adolescente ariano... e sobre a forma debochada de brincar com as pessoas que o cercavam.
Quando, num ato de desespero, minha mãe decidiu trancá-lo em casa e fugir conosco pela janela, preferi fazer daquele momento ‘a grande aventura de nossas vidas’. Uma fuga heroica!
Mas... e os bichinhos do escuro??
A partir daí, foi só o resto da vida lembrando do único momento perfeito ao seu lado.
E foi, também, o resto da vida tentando entender e aceitar uma saudade que não tem fim.
Como eu queria ter levado uma bronca sua, um puxão de orelhas, um conselho, um elogio...
Como eu queria ter aprendido a dirigir com ele...
Como eu queria ter comemorado com ele a nota dez na redação, a aprovação no vestibular, no concurso, na cantada investida...
Como eu queria ter comparado infinitas vezes minha boca a sua, meu sorriso ao seu...
Como eu queria ter podido carregá-lo no colo quando tanto precisou.
Mas, como também tínhamos em comum a ‘estranha mania de ter fé na vida’, ‘pode ser que daqui algum tempo haja tempo pra gente ser mais’.

(Stella Marla – 11Ago2013)

terça-feira, 6 de agosto de 2013

'Não tenho a mínima pretensão de estar à curta distância de Deus; mas tenho evitado certos demônios, inclusive os meus.'

(Stella Marla - 06Ago2013)

domingo, 4 de agosto de 2013

Da Janela

Não. Não era só a calça desfiada, ou o tênis desamarrado.
Não era o seu cabelo desalinhado, nem a mochila em suas costas.
Havia algo vindo da sua pele. Um frescor juvenil, um aroma de 'coisa nova'.
Se fosse pra esboçar seu rascunho, diria que não deveria ter problemas. Diria que ainda experimentava a vida. Ela parecia feliz. E isso, tão raro nos dias de hoje, se tornara seu encanto.
Já não era adolescente, mas aquele ar de menina livre se mantinha.
Era como se tudo o que realmente importasse, estivesse dentro daquela mochila.
Eu me perguntava que alma era aquela, que, de tão leve, pesava em meus pensamentos.
E, todos os dias, no mesmo horário, eu, da janela do escritório, vislumbrava o desfile dos seus cabelos livres, tão livres quanto o seu olhar. Um olhar que não me via, mas que, a partir daqueles instantes, eu passava a ter um dia melhor.
Eu, com medo de estragar a magia que me ligava à ela, escondia-me atrás da cortina. Assim, além de me proteger, cuidava dela e, ao mesmo tempo, a destacava de todo o resto.
Então, meus olhos a seguiam por aquele quarteirão sem perder um passo seu e, quando ela virava a esquina, eu já me punha a aguardar pelo próximo dia, pelo próximo 'encontro'. Ah, que raiva eu sentia daquela esquina!
A partir dali, minha imaginação produzia imagens sobre o que acontecia longe dos meus olhos: até onde ela ia, onde entrava, o quê fazia... Mas, de que maneira eu saberia, se eu sequer cogitava interferir naquela rotina e correr o risco de quebrar a beleza do pouco que me fazia tão bem?
E assim, os dias corriam, a vida seguia.
E, por meses a fio, religiosamente, eu estava lá, naquela janela nada indiscreta.
Foi quando, num certo dia ventoso, uma folha de papel com o seu desenho voou de minha mesa e passou pelas vidraças abertas.
Constrangida e com receio de que aquilo fosse o suficiente para atrapalhar aquela paisagem, intacta há tanto tempo, tentei guiar seu 'pouso' com a força do meu olhar.
Até hoje não sei se meu olhar me traiu, ou se ele nunca teve a menor influência sobre minhas vontades.
Aquela folha de papel aterrissou logo à frente de seu próximo passo.
Foi quando ela a apanhou.
Apanhou e leu.
Leu e me olhou.
Olhou e sorriu.
Sorriu e me chamou.
Estremeci e titubeei, mas, em milésimos de segundo, refleti e concluí que não perderia algo além do que concretamente nunca tivera.
Desci e, daquele ponto da calçada, mirei aquela janela.
Percebi que ela era bem menos discreta do que eu supunha e que as personagens dessa história já eram íntimas, cada uma em seu silêncio.
Então, em silêncio, seguimos pelo quarteirão.
E viramos a esquina.

(Stella Marla - 04Ago2013, da série 'Tirados da Gaveta')