domingo, 11 de agosto de 2013

Francisco

Não, não sentamos pra brincar no ‘tapete da sala de estar’.
Tão pouco me ensinou a caminhar.
Ele, mesmo, já desaprendera.
Não, não brincamos na pracinha.
Nem me ensinou a ler e escrever.
Então, também não tivemos aquela conversa de pai pra filha.
Eu, na minha inocência, gostava da sensação de suas mãos trêmulas em meus cabelos.
Sentia que o cheiro do meu pai era diferente do da minha mãe, mas, de qualquer forma, eu sempre o esperava chegar em casa.
Do seu jeito cambaleante, ele me levava pro seu quarto e, com a brasa do palito de fósforo com o qual ele acendia o cigarro, desenhava, no escuro, figuras de todos os bichinhos que uma criança de três anos pudesse conhecer.
E assim, eu dormia em seu peito.
Aquele era um momento verdadeiramente mágico no meio de uma realidade falida.
Pra aceitá-lo e não estragar os poucos momentos perfeitos que passamos, escolhi não lembrar de todos os episódios ruins que presenciei e não entendi.
Quando o vi submerso naquela banheira de louça branca, curando uma de suas violentas ressacas ao som de ‘Além do Horizonte’, do Roberto, preferi guardar no meu ‘jogo psicológico de sobrevivência’ a imagem do seu sorriso tonto e fazer dessa música um 'hino de esperança'.
Soube mais de meu pai pelo que os outros contaram.
Alguns disseram que tenho seu jeito, seu signo, sua boca e seu senso de humor.
Outros contaram sobre as sacanagens daquele adolescente ariano... e sobre a forma debochada de brincar com as pessoas que o cercavam.
Quando, num ato de desespero, minha mãe decidiu trancá-lo em casa e fugir conosco pela janela, preferi fazer daquele momento ‘a grande aventura de nossas vidas’. Uma fuga heroica!
Mas... e os bichinhos do escuro??
A partir daí, foi só o resto da vida lembrando do único momento perfeito ao seu lado.
E foi, também, o resto da vida tentando entender e aceitar uma saudade que não tem fim.
Como eu queria ter levado uma bronca sua, um puxão de orelhas, um conselho, um elogio...
Como eu queria ter aprendido a dirigir com ele...
Como eu queria ter comemorado com ele a nota dez na redação, a aprovação no vestibular, no concurso, na cantada investida...
Como eu queria ter comparado infinitas vezes minha boca a sua, meu sorriso ao seu...
Como eu queria ter podido carregá-lo no colo quando tanto precisou.
Mas, como também tínhamos em comum a ‘estranha mania de ter fé na vida’, ‘pode ser que daqui algum tempo haja tempo pra gente ser mais’.

(Stella Marla – 11Ago2013)

Nenhum comentário:

Postar um comentário