terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Meia-Luz

O velho homem se sentou em frente à lareira.
Era fim de tarde fria.
A sua frente, várias lascas de lenha que ele mais cedo cortara: sabia que a noite seria mais gelada do que já havia sido o dia.
Estava melancólico, mas isso já se tornara traço pessoal. Tinha alguns anos que vivia só e seu presente era lembrar do passado.
Enquanto ajeitava os torrões de brasa, enxergava com nitidez fragmentos vivos de momentos intensos, como se estivesse
revivendo-os.
E assim eram seus dias: seguidos de noites gélidas e memórias.
Havia preparado o seu copo de vinho tinto seco: o mesmo que o aquecia há vários invernos.
Seu rosto trazia marcas profundas. Nem eram rugas. Apenas mostrava um aspecto áspero de tristeza e saudade, e de coisas e sentimentos que não sabia explicar.
Mesmo que nunca mais quisesse vivê-los, não tinha tarde fria que ele naturalmente não recordasse.
Sentia que já havia vivido o bastante. Talvez o corpo não demonstrasse isso: era um homem velho, mas com vigor e força. Faltava fibra apenas no coração.
Fizera escolhas.
Ao longo desses anos, foram estas que pesaram: parte fê-lo sofrer.
Era culto. Falava bem. Lia muito.
A casa era simples e pequena. Limpa. Clara. Única no meio de um espaço retirado da zona urbana, como ele fizera questão que fosse.
Exigia o silêncio como parceiro de quarto. Apenas o cão mestiço o acompanhava. E o espreitava. Sabia quando o dono não estava ali e respeitava aquele horário diário.
A rotina havia se tornado uma hóspede endividada: não desocupava a vaga que tomou.
Enquanto a fogueira alastrava, o velho viajava pelos tons alaranjados das labaredas.
Vinham-lhe lembranças claras e todas as suas sensações.
Entre um gole e outro que extraía da taça, a memória revolvia destroços. Era nítida a última coisa que fizera antes de abandonar a casa na qual vivera por tantos anos: a carta inacabada, deixada sobre a escrivaninha. Sua mão trêmula lhe impediu de finalizar sua despedida e, por isso, a deixara assim mesmo.
A casa... branca, cheia de luz e alegria.
Vozes a inundavam e crianças não permitiam a entrada do silêncio.
As festas de aniversário, as bodas e as comemorações de fim de ano eram aguardadas com expectativa pelos seus seis netos, que seus três filhos lhes deram.
Esposa, teve uma. Uma razão para amar a vida e tudo que aconteceu depois que a conhecera. Nunca mais sairia da sua mente a fisionomia daquela mulher de traços finos, pele branca. Seus cabelos castanhos, arrumados, contornavam seu rosto oval e combinavam com o tom da tez.
O velho homem não suportava lembrar tanta beleza. Doía sempre e mais. Era coisa que envolvia pele, entranha, dentes, calor, tremor. Pensava: que Deus é este que me pôs o mundo nas mãos e, bruscamente, delas o arrancou?
Neste momento, caía uma lágrima, mistura de saudade com raiva.
E tragava seu vinho, que aliviava a garganta amarrada em nó.
Os pensamentos, desarrumados, voltavam.
Dessa vez, enxergava seus pés. Calçava sapatos pretos, quadrados.
Voltara para casa mais cedo, depois do dia mais difícil no escritório.
Abrira a porta de entrada.
Largara a maleta no chão da sala e percorria, silenciosamente, o seu tapete vermelho.
Não esperava encontrar a mulher.
Naquele horário, talvez a empregada estivesse terminando seus afazeres. Então, serviu-se do scotch e se sentou no sofá.
Descalçou os sapatos e afrouxou a gravata.
Sentiu a visão embaralhar depois do segundo gole, e lembrou que, por causa de tudo que acontecera durante o dia, não tivera tempo para o almoço.
À procura da serviçal para que lhe preparasse algo, estranhou o silêncio perdurando e uma única luz acesa ao final da escada.
Com a visão turva e um tanto trôpego, subiu as escadas.
Pelo corredor, passa pelo quarto de hóspedes e, próximo ao seu, ouve um sussurro que pensa ser produto do efeito etílico. Mas continua andando, perseguindo a porta do seu aposento, quando se depara com ela entreaberta.
Silenciosamente e confuso, espia naquele vão e vê o que seria determinante para eternas tardes frias de lembrança.
Neste momento, mais uma lágrima lhe rola a face. Acostumado com esta rotina, o cão mais uma vez o espreita.
O velho homem agora se inunda de um sentimento ruim, algo que jamais imaginara sentir por aquela mulher, tão amada e desejada desde o primeiro dia em que lhe fitara.
Mãe de seus filhos, estava convencido de que a felicidade existia e lhe batera cedo à porta. Nada no mundo poderia ser maior e mais forte do que tudo o que tinha junto dela.
O amor, as conquistas, a família, o alto padrão de vida e o respeito que mantinham entre todos.
Ainda descalço, volta, sem fazer ruído, desce as escadas e tenta aprontar o bilhete de adeus. Em pedaços, calça os sapatos e sai, para nunca mais voltar.
Outro gole de vinho e a noite cai, inteira e impiedosa.
O velho homem, cambaleando, abandona a lareira e persegue, na escuridão, a porta de seu quarto.
Jamais haverá, naquela casa, meia-luz que lhe cause surpresa.


(Conto classificado entre os 10 melhores no 8° Concurso de Contos do Instituto Popular De Arte-Educação/PoA - Dez2009)

Um comentário:

  1. ...traigo
    sangre
    de
    la
    tarde
    herida
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
    darte
    este
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    desde mis
    HORAS ROTAS
    Y AULA DE PAZ


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    CON saludos de la luna al
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    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CHAPLIN MONOCULO NOMBRE DE LA ROSA, ALBATROS GLADIATOR, ACEBO CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER ,CHOCOLATE Y CREPUSCULO 1 Y2.

    José
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